sexta-feira, 4 de março de 2016

ESTUDO DE CASO - CIVIL I, II, IV e V - ou, Vai vendo como a vida é compleeeexa...

CIVIL I, II, IV e V – ESTUDO DE CASO: pensão alimentícia, teoria do pagamento, mora em receber, aquisição da propriedade, prescrição, bens classificados em si mesmos e representação no mesmo caso! (ou, título alternativo, Vai vendo como a vida é complexa!)

APRESENTAÇÃO – A VIDA COMO ELA É
Sempre nos deparamos, ao lecionar, com a dificuldade de mostrar ao aluno como os assuntos, vistos isoladamente em sala, se conectam de modo complexo. Essa dificuldade advém do fato de ser o sistema de ensino organizado em semestres apresentados de modo estanque, desconexo. Como sempre digo, infelizmente nosso aluno progride para a cadeira Civil II e deleta da memória os conceitos de Civil I. Como as matérias são apresentadas e avaliadas de modo a isolar um determinado ponto específico da teoria, sem exigir essa percepção cumulativa, perde-se a visão de conjunto, perde-se a noção de como, na vida real, os assuntos se misturam, se confundem, se interinfluenciam etc.

A solução definitiva para isso é só uma: lançar-se na prática, o que, evidentemente só poderá ser feito após a formatura. No meio do caminho, porém, temos a leitura de julgados relevantes e estudos de caso como uma ferramenta bastante útil. Frequentemente trazemos, aqui no blog, um caso comentado, com a intenção de contribuir para o estudo dos alunos.

Este que segue, porém, mereceu nossa especial atenção. O caso é aparentemente simples, mas essa aparência é falsa. Uma melhor análise revela sua complexidade. Embora tenhamos atuado como advogado, faremos uma apresentação teórica, descomprometida com posicionamentos neste ou naquele sentido. Dessa forma, estamos abertos ao debate, opiniões e, claro, críticas, no melhor estilo do debate Acadêmico.

A complexidade da análise nos impôs que dividíssemos o post, fazendo mais de uma publicação, para melhor explorar cada aspecto jurídico envolvido e, por outro lado, dar mais tempo para que as idéias, ao sedimentarem, se revelassem com contornos mais precisos.

Faremos, aqui, a primeira etapa da apresentação, relatando de modo sintético o caso e, na sequência, os argumentos da decisão que precisamos enfrentar. Após, lançamos as questões que acreditamos precisam ser resolvidas para melhor compreensão. Neste post, apenas problematizarei o caso, levantando as questões que me parecem pertinentes para a análise da questão.

O CASO
Chega-nos a seguinte situação-problema. Um pai, servidor, paga pensão alimentícia por meio de desconto em sua remuneração. Todos sabem como isso funciona, mas, considerando a importância para o caso, vamos lembrar: fixada a pensão alimentícia em forma de percentual sobre o vencimento, o juízo oficia à fonte pagadora para que, quando do pagamento da remuneração, retenha o percentual estipulado e deposite na conta bancária informada pelo alimentado.

Como o filho havia atingido a maioridade, bem como também já trabalhava, o pai nos procurou para fazermos a exoneração. No curso do processo, por meio das conversas e documentos obtidos, descobrimos que o alimentando já não recebia a pensão havia vários anos. Descobrimos, após diligências, que a pensão, embora descontada da remuneração do pai, ao ser depositada na conta do filho, era devolvida pelo banco de destino, porque a conta havia sido desativada.

Acontece que a instituição financeira devolvia esse valor para a fonte pagadora (governo), com a explicação dada (a conta de destino foi desativada). Agora, a parte linda da história: o que a instituição fez? Nada. Ficou esse tempo todo com a grana. Não avisou o servidor (pai). Não avisou o filho. Não avisou o juízo. Não consignou em pagamento. Em resumo, não fez rigorosamente nada. (E nem acho que tenha sido má-fé, mas apenas mais um caso de um exemplo gigante de ineficiência do Estado. Sempre digo que carimbador de papel concursado tem aos montes, a rodos... Mas servidor público de verdade – que serve ao público! – esses contamos nos dedos de uma mão amputada.)

LOCALIZANDO O PROBLEMA
Claro que, ao descobrirmos essa situação, pedimos judicialmente a devolução do valor (além da exoneração dos descontos, conforme pedido principal). Como atuamos para o pai, contamos o prazo prescricional e pedimos a devolução a seu favor da parte já consumida pelo prazo prescricional.

Ocorre que – e aí é que a coisa fica interessante! – o juízo nega o pedido, ao fundamento de que, em síntese, foi operado o pagamento e, então, não há que se falar em prescrição de dívida que já foi paga. Algumas passagens do texto da decisão ilustram o pensamento do magistrado (sublinhas nossas, todas):

O autor pretende ver reconhecida a prescrição de parcelas alimentícias pagas em favor do filho, com a posterior devolução.

Destarte, feito o desconto feito estava, igualmente, o pagamento por parte do autor, razão pela qual não houve descumprimento da obrigação de sua parte.

Os alimentos pagos a título de alimentos são irrepetíveis.

A alegada inércia do credor dos alimentos em retirá-los junto ao órgão empregador do alimentante não ocasiona a prescrição das referidas verbas, eis que devidamente adimplidas, como já exposto.

Portanto, está claro o percurso argumentativo da decisão: se houve desconto, houve pagamento; se houve pagamento, não há que se falar em prescrição e não cabe a devolução ao servidor dos valores descontados e retidos. O resumo do resumo, portanto, é a consideração de, no caso, ter havido o pagamento a partir do desconto efetuado pela fonte pagadora.

Entretanto, vamos refazer o caminho de trás para frente – ou seja, dada a resposta (dada a tese afirmada na decisão), vamos localizar a pergunta: EM QUE MOMENTO O PAGAMENTO É CONSIDERADO JURIDICAMENTE APERFEIÇOADO?

Essa pergunta, aparentemente simples quando feita de modo abstrato, ganhou complexidade ao ser conectada a este singular caso concreto, de modo que respondê-la requer a análise combinada de vários aspectos do Direito. Precisamos analisar as seguintes sub-questões:

Houve, de fato, o pagamento, tal como pensa o magistrado? O que é o pagamento? Quem paga e a quem se paga? Em que momento se aperfeiçoa o pagamento?

Qual a natureza do ato de retenção, praticado pelo Estado/fonte pagadora?

A quem pertence o valor retido, antes da entrega ser efetivada ao destinatário/credor/alimentando? (Detalhe: não disse “a quem deve ser entregue o valor descontado?”; eu disse “a quem pertente?” – o que não é, em absoluto, a mesma coisa!)

Em suma, a mera retenção pela fonte pagadora, sem a efetivação da entrega do dinheiro retido ao filho alimentado, caracteriza o pagamento, como sugere o magistrado?

Não seria necessária a consignação em pagamento para que se pudesse falar em adimplemento da obrigação?

De modo ainda mais radical, podemos mesmo falar que existia, de fato, à época, o dever de pagar alimentos? O que constitui o dever de prestar alimentos é a necessidade do alimentado ou a decisão judicial? Neste caso, qual o efeito jurídico do ato do credor/alimentado de encerrar sua conta – ou, que seja, do ato omissivo de não questionar o encerramento? 


CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS: apresentaremos os conceitos teóricos e argumentos pertinentes no próximo post. Ao fim, trabalharemos sobre a conclusão do argumento sobre nossa visão teórica do caso. Convido os leitores a retornarem. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

AGORA, DEIXE SEU COMENTÁRIO:

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.