CIVIL I, II, IV e V – ESTUDO DE
CASO: pensão alimentícia, teoria do pagamento, mora em receber, aquisição da
propriedade, prescrição, bens classificados em si mesmos e representação no
mesmo caso! (ou, título alternativo, Vai vendo como a vida é complexa!)
APRESENTAÇÃO – A VIDA COMO ELA É
Sempre nos deparamos, ao
lecionar, com a dificuldade de mostrar ao aluno como os assuntos, vistos
isoladamente em sala, se conectam de modo complexo. Essa dificuldade advém do
fato de ser o sistema de ensino organizado em semestres apresentados de modo
estanque, desconexo. Como sempre digo, infelizmente nosso aluno progride para a
cadeira Civil II e deleta da memória os conceitos de Civil I. Como as matérias
são apresentadas e avaliadas de modo a isolar um determinado ponto específico
da teoria, sem exigir essa percepção cumulativa, perde-se a visão de conjunto,
perde-se a noção de como, na vida real, os assuntos se misturam, se confundem,
se interinfluenciam etc.
A solução definitiva para isso é
só uma: lançar-se na prática, o que, evidentemente só poderá ser feito após a
formatura. No meio do caminho, porém, temos a leitura de julgados relevantes e
estudos de caso como uma ferramenta bastante útil. Frequentemente trazemos,
aqui no blog, um caso comentado, com a intenção de contribuir para o estudo dos
alunos.
Este que segue, porém, mereceu
nossa especial atenção. O caso é aparentemente simples, mas essa aparência é
falsa. Uma melhor análise revela sua complexidade. Embora tenhamos atuado como
advogado, faremos uma apresentação teórica, descomprometida com posicionamentos
neste ou naquele sentido. Dessa forma, estamos abertos ao debate, opiniões e,
claro, críticas, no melhor estilo do debate Acadêmico.
A complexidade da análise nos
impôs que dividíssemos o post,
fazendo mais de uma publicação, para melhor explorar cada aspecto jurídico
envolvido e, por outro lado, dar mais tempo para que as idéias, ao sedimentarem,
se revelassem com contornos mais precisos.
Faremos, aqui, a primeira etapa
da apresentação, relatando de modo sintético o caso e, na sequência, os
argumentos da decisão que precisamos enfrentar. Após, lançamos as questões que
acreditamos precisam ser resolvidas para melhor compreensão. Neste post, apenas problematizarei o caso,
levantando as questões que me parecem pertinentes para a análise da questão.
O CASO
Chega-nos a seguinte situação-problema.
Um pai, servidor, paga pensão alimentícia por meio de desconto em sua
remuneração. Todos sabem como isso funciona, mas, considerando a importância
para o caso, vamos lembrar: fixada a pensão alimentícia em forma de percentual
sobre o vencimento, o juízo oficia à fonte pagadora para que, quando do
pagamento da remuneração, retenha o percentual estipulado e deposite na conta bancária
informada pelo alimentado.
Como o filho havia atingido a
maioridade, bem como também já trabalhava, o pai nos procurou para fazermos a
exoneração. No curso do processo, por meio das conversas e documentos obtidos,
descobrimos que o alimentando já não recebia a pensão havia vários anos.
Descobrimos, após diligências, que a pensão, embora descontada da remuneração
do pai, ao ser depositada na conta do filho, era devolvida pelo banco de
destino, porque a conta havia sido desativada.
Acontece que a instituição
financeira devolvia esse valor para a fonte pagadora (governo), com a
explicação dada (a conta de destino foi desativada). Agora, a parte linda da
história: o que a instituição fez? Nada. Ficou esse tempo todo com a grana. Não
avisou o servidor (pai). Não avisou o filho. Não avisou o juízo. Não consignou
em pagamento. Em resumo, não fez rigorosamente nada. (E nem acho que tenha sido má-fé, mas apenas mais um caso de um exemplo
gigante de ineficiência do Estado. Sempre digo que carimbador de papel
concursado tem aos montes, a rodos... Mas servidor público de verdade – que
serve ao público! – esses contamos nos dedos de uma mão amputada.)
LOCALIZANDO O PROBLEMA
Claro que, ao descobrirmos essa
situação, pedimos judicialmente a devolução do valor (além da exoneração dos
descontos, conforme pedido principal). Como atuamos para o pai, contamos o
prazo prescricional e pedimos a devolução a seu favor da parte já consumida
pelo prazo prescricional.
Ocorre que – e aí é que a coisa fica interessante! –
o juízo nega o pedido, ao fundamento de que, em síntese, foi operado o
pagamento e, então, não há que se falar em prescrição de dívida que já foi
paga. Algumas passagens do texto da decisão ilustram o pensamento do magistrado
(sublinhas nossas, todas):
O autor pretende ver reconhecida a prescrição de parcelas
alimentícias pagas em favor do filho, com a posterior devolução.
Destarte, feito o desconto feito estava, igualmente, o
pagamento por parte do autor, razão pela qual não houve descumprimento da
obrigação de sua parte.
Os alimentos pagos a título de alimentos são
irrepetíveis.
A alegada inércia do credor dos alimentos em retirá-los
junto ao órgão empregador do alimentante não ocasiona a prescrição das
referidas verbas, eis que devidamente adimplidas, como já exposto.
Portanto, está claro o percurso
argumentativo da decisão: se houve desconto, houve pagamento; se houve
pagamento, não há que se falar em prescrição e não cabe a devolução ao servidor
dos valores descontados e retidos. O resumo do resumo, portanto, é a
consideração de, no caso, ter havido o pagamento a partir do desconto efetuado
pela fonte pagadora.
Entretanto, vamos refazer o
caminho de trás para frente – ou seja, dada a resposta (dada a tese afirmada na
decisão), vamos localizar a pergunta: EM QUE MOMENTO O PAGAMENTO É CONSIDERADO
JURIDICAMENTE APERFEIÇOADO?
Essa pergunta, aparentemente
simples quando feita de modo abstrato, ganhou complexidade ao ser conectada a
este singular caso concreto, de modo que respondê-la requer a análise combinada
de vários aspectos do Direito. Precisamos analisar as seguintes sub-questões:
Qual a natureza do ato de retenção, praticado pelo
Estado/fonte pagadora?
A quem pertence o valor retido, antes da entrega ser
efetivada ao destinatário/credor/alimentando? (Detalhe: não disse “a quem deve
ser entregue o valor descontado?”; eu disse “a quem pertente?” – o que não é,
em absoluto, a mesma coisa!)
Em suma, a mera retenção pela fonte pagadora, sem a efetivação
da entrega do dinheiro retido ao filho alimentado, caracteriza o pagamento,
como sugere o magistrado?
Não seria necessária a consignação em pagamento para que se
pudesse falar em adimplemento da obrigação?
De modo ainda mais radical, podemos mesmo falar que
existia, de fato, à época, o dever de pagar alimentos? O que constitui o dever
de prestar alimentos é a necessidade do alimentado ou a decisão judicial? Neste caso, qual
o efeito jurídico do ato do credor/alimentado de encerrar sua conta – ou, que
seja, do ato omissivo de não questionar o encerramento?
CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS:
apresentaremos os conceitos teóricos e argumentos pertinentes no próximo post. Ao fim, trabalharemos sobre a
conclusão do argumento sobre nossa visão teórica do caso. Convido os leitores a
retornarem.
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