INTRODUÇÃO:
Neste texto,
destacamos o §2º do art. 794 da Lei 13.105/15 (o novo Código de Processo Civil-
NCPC). Para esse escopo, apresentamos sumariamente a idéia geral a respeito da
fraude à execução. Após, discutimos o dispositivo citado. Concluímos com
algumas reflexões acerca da inserção dessa figura jurídica no contexto cultural brasileiro.
CONCEITOS
BÁSICOS:
“Fraude à
execução” é expressão um tanto quanto autoexplicativa: alguém que esteja sendo
judicialmente executado – ou que saiba que o será – tenta fraudar tal
procedimento, ou seja, age para torná-lo ineficaz.
Como isso é
feito? O devedor, sabendo que o juiz deverá penhorar em algum momento futuro
seus bens por conta da dívida que deixou de pagar, se desfaz desse patrimônio
(vendendo, trocando ou doando, por exemplo), a fim de não vê-lo atingido pela
penhora que deveria acontecer.
Um pequeno grande
detalhe é que, pela lei processual, não é necessária a instauração do processo específico de execução, ou fase de cumprimento de sentença. Instaurado o processo
judicial, mesmo em fase de conhecimento, esse procedimento do devedor pode ser
considerado, conforme o caso concreto, ato de fraude à execução.
PERSONAGENS:
Nessa situação,
temos o credor que está "a ver navios" e move o judiciário para tentar receber
seu crédito. Ele será o autor do processo – também chamado de exequente, se o caso for de processo de execução por título extrajudicial, dispensada a fase de
conhecimento.
Por outro lado,
há o devedor, que não pagou e sofre o processo, sendo réu ou executado,
conforme o caso. É ele que, modo geral falando, é o dono do patrimônio que o
credor esperava ver penhorado – para depois ser vendido, transformado em
dinheiro e, com isso, efetuado o pagamento forçado. É ele, então, que operará a
malandragem chamada fraude à execução – já que seu bem virá a ser penhorado, antes
disso ele o vende, ou doa, por exemplo, a terceira pessoa. Assim, quando a penhora judicial
for determinada, o bem já não é mais dele e, por isso, não poderia ser
penhorado – já que a venda foi realizada antes da penhora e, por outro lado, o
novo dono nada deve ao credor.
Por fim, há esse
tal do “terceiro”. É ele que compra ou recebe em doação o bem em questão. Ele é,
portanto, o adquirente do bem. É chamado “terceiro” porque não é parte no processo
judicial, nem é parte na relação de dívida entre credor/autor e devedor/réu. Claro
que ele é parte, obviamente, no contrato em que faz com o devedor. Nesse contrato
ele é parte. Porém, ao se analisar o processo/contrato entre credor/autor e
devedor/réu, o adquirente é terceiro – terceiro adquirente.
Um detalhe
importante para o que diremos ao final é que ele, terceiro adquirente, pode ou
não estar de conluio com o devedor. Ele pode ser um “laranja” do devedor e
conhecer todos os seus planos caloteiros. Porém, nem sempre será assim! Ele pode
ser um inocente útil – no caso, útil para o devedor. Ou seja, pode haver
situações em que o terceiro adquirente não tem nenhuma intenção de ajudar o
devedor a fraudar a execução. Ele, terceiro, simplesmente vê o tal bem
anunciado e se apresenta para comprá-lo, pagando regularmente pela compra, sem nada saber a respeito dos
problemas dos outros dois – credor e devedor. Peço ao leitor que guarde essa
idéia, pois voltarei a ela já já.
UMA RÁPIDA
DIFERENCIAÇÃO:
Como estou
comentando um tema de processo civil, mas sou professor de direito civil
material, cabe um rápido comentário neste contexto. A fraude à execução tem a
mesma base filosófica de uma figura estudada dentro dos vícios do negócio
jurídico. Lá se vê a figura da fraude contra credores (Código Civil,
arts. 158 a 165). A idéia geral da coisa é exatamente a mesma – a operação
contratual do devedor para esvaziar a futura penhora de seu patrimônio. Porém, além
de outros detalhes menores, na fraude contra credores ainda não se tem processo
judicial instaurado contra o devedor – disso derivam algumas diferenças, mas não
vamos trazê-las aqui, para não desviarmos o foco deste texto.
O OBJETIVO DA
FIGURA JURÍDICA:
Pela regra geral
da vida, uma dívida só pode ser cobrada de quem é o devedor – ou de algum
personagem que a legislação ponha em seu lugar ou ao seu lado. Além disso, também
pela regra geral da vida, só podemos fazer o devedor pagar o que deve por
intermédio de seu patrimônio – já não podemos mais vendê-lo como escravo, ou obrigá-lo
a realizar trabalhos forçados (às vezes, é uma pena que não se possa mais...).
Sabendo disso, o
devedor que tem patrimônio, mas quer dar o calote, faz o quê? Transfere o
patrimônio para o tal do “terceiro” (lembre-se: pode estar de conluio ou pode
ser um inocente útil). Assim, quando o juiz mandar penhorar o bem, será
verificado que, não sendo o bem pertencente ao devedor (já que foi transferido),
não poderá ser feita a penhora, já que o terceiro não é parte no processo nem é
parte na obrigação que está sendo cobrada. Assim, como diz o dito popular, se o
terceiro não deve, não teme. Mas deveria...
O terceiro
deveria temer a execução porque, se o autor/credor demonstrar para
o juiz a ocorrência, no caso, de fraude, aquele bem que o terceiro
adquiriu honestamente poderá ser também penhorado para realizar o pagamento forçado de uma dívida
que não é sua. Resumindo, configurado que a venda (por exemplo) se deu em
regime de fraude à execução, para fins daquele processo será como se não
houvesse venda; ou seja, será como se o bem ainda fosse do devedor (e não do
terceiro); ou seja, o bem, mesmo tendo mudado de dono, poderá ser igualmente
penhorado – repetindo, é este o núcleo central da figura: penhorar um bem que,
a rigor, já não é mais daquele que deve pagar.
O TERCEIRO DE
BOA-FÉ – OU O INOCENTE ÚTIL:
Como disse, nem
sempre o terceiro adquirente está de conluio com o réu/devedor (vendedor). Ele pode
ser uma pessoa totalmente boazinha, que paga seus impostos, respeita os limites
de velocidade, vai à missa todos os domingos, paga o que deve e, ainda assim,
ter sua nova compra “tomada” pelo juiz – mesmo que não soubesse absolutamente
de nada a respeito da vida e problemas do credor e do devedor.
O leitor certamente
estará pensando: mas ele, terceiro adquirente, ao ver o bem adquirido ser-lhe tomado
por uma dívida do réu/devedor (vendedor) poderá pedir seu dinheiro de volta?
Sim, claro que poderá. Existe até um nome para isso – o terceiro
adquirente, no caso, teria sofrido a chamada evicção. Porém, sublinhamos a
palavra “poderá”, acima, para indicar que, embora o terceiro tenha esse direito na lei, acontece que, na
vida real, em 99,99% dos casos ele não conseguirá receber nada – o famoso “ganha
mas não leva”. Por quê? Ora... Trivial... Se o réu/devedor já não pagou o
credor/autor, operando a tal fraude à execução, que dirá o pobre coitado do
inocente útil que chegou depois.
O leitor,
inteligente, segue perguntando: e o dinheiro que o inocente útil pagou pelo
bem? Não pode ser penhorado, tomado de volta? De novo – veja a sublinha mais uma vez: pode
(é juridicamente possível). Porém, como diz a canção, “dinheiro na mão é
vendaval” e certamente o réu/devedor já deu destino para essa grana, de modo
que o terceiro adquirente, embora amparado pela lei, na prática não conseguirá reaver esse
dinheiro; vai ser ele quem ficará a ver navios.
UMA RÁPIDA NOTA
SOBRE A RÁPIDA DIFERENCIAÇÃO FEITA ACIMA:
Se o caso fosse
de fraude contra credores (código civil), não de fraude à execução (processo
civil), o inocente útil seria protegido nos casos em que a aquisição se deu de
forma onerosa (compra ou troca, por exemplo) – o direito protege a boa-fé
(lembre o leitor que estou a falar do “inocente útil”, não do “laranja”). Mas se
o caso é de fraude à execução (processo civil), mesmo sendo a alienação
onerosa, mesmo o terceiro pagando pelo bem, poderá o inocente útil ser atingido pela penhora. Isso é importante de
se ter em mente ao analisar uma situação concreta.
O DISPOSITIVO
PROCESSUAL EM DESTAQUE:
No NCPC, o
legislador inseriu um texto interessante – leia-se: art. 792, § 2º. No
caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o
ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição,
mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor
e no local onde se encontra o bem. Traduzindo em bom
português: o inocente útil pode até ser protegido, evitando a penhora, desde
que não tenha sido imprudente, incauto. Como assim? Vejamos.
Filosoficamente
falando, a idéia primeira é forçar o pagamento ao autor/credor – para isso, permite-se
a penhora do bem. A idéia segunda é que o bem a penhorar deve pertencer ao devedor/réu
– sendo de outra pessoa, ou seja, pertencendo ao terceiro, não pode ser
penhorado (obviamente ressalvados os casos de co-responsáveis, fiadores etc.). A
idéia terceira é que se o adquirente comprou/recebeu o bem após o processo
haver sido já iniciado contra o devedor, ele, terceiro adquirente, pode se dar
mal, não por sua malandragem (não é um laranja), mas por seu descuido – não se
importou em tomar o cuidado de saber se o vendedor já está comprometido com
outras dívidas. A idéia quarta – por fim – é que o adquirente não pode ser
penalizado com a penhora (e futura perda do bem) se ele, adquirente, não tinha
como saber da existência de processos contra o vendedor – ou seja, se, apesar
de cuidadoso, não pôde descobrir a existência de processo pendente contra o vendedor
por motivos afetos à dinâmica da burocracia processual. (Digamos assim, ele não viu o problema, não porque não tenha olhado, mas porque olhou e não estava lá - ou estava, mas de forma invisível) Bom senso, não?
Então segue a
próxima pergunta: como é que alguém interessado em comprar um objeto pode ficar
sabendo da existência de ações contra o réu/devedor (vendedor)? Por dois
caminhos. Sendo bens que possuem registro em cartório (sobretudo imóveis, por
exemplo), verificando exatamente a situação atual do registro. Lá estarão
anotadas virtualmente todas as situações jurídicas que possam afetar aquele
patrimônio. Agora, por outro lado, sendo um bem que não possui registro (móveis
modo geral – computadores, maquinários, rebanho de animais etc.; os carros
possuem registro no Detran e escapam dessa lista), o interessado em adquiri-lo pode pedir certidões de distribuição nos cartórios judiciais
a respeito da pessoa do vendedor. Com essas certidões, então, poderá saber se contra o vendedor há ou não ações
judiciais pendentes.
Acima sublinhei a
palavra “poderá” para aqui destacar – esse "poderá", na verdade, segundo o
código, é um deverá. Explico. Se o interessado em comprar o bem não
pedir as tais certidões, por isso não ficar sabendo da existência de processos
contra o vendedor, caso o vendedor perca os tais processos, o bem vendido
poderá ser penhorado, mesmo o terceiro adquirente estando inocente na história –
ele até é inocente, mas foi incauto; podia/devia ter tomado o cuidado de se
informar, mas não o fez; por isso será afetado pelos problemas que, na verdade,
originalmente eram apenas daquele que lhe vendeu o bem (parafraseando a Bíblia,
diga-me de quem compras e te direi os problemas em que te metes).
Em síntese, o que
o texto destacado do NCPC fez foi dizer que, se você pretende comprar um bem de
João, cabe a você investigar a situação do bem (junto ao cartório de registro
de imóveis ou Detran, por exemplo) e do João (junto aos cartórios judiciais de distribuição
de processos, pelo menos).
Claro que essas cautelas tomam tempo e dinheiro. Na vida real,
se alguém vai comprar um bem de valor pouco expressivo, talvez esse cuidado
possa mesmo ser dispensado, numa análise de relação entre risco e custo-benefício
que se faz até intuitivamente. Porém, se a compra é de um bem de maior valor,
por exemplo maquinários em geral, um carro, rebanhos – ou, que tal, quotas de
participação em sociedades limitadas, direitos sobre marcas etc. – aí a cautela
se impõe.
UMA NOTA SOBRE
NOSSO TRAÇO CULTURAL:
A exposição
jurídica acabou, mas convido o leitor a continuar. A pergunta que imagino ser
feita ao final dessa exposição é: como alguém que é um leigo em questões
jurídicas pode saber disso tudo? Ou seja, como exigir que todos saibam dessa “filigrana
jurídica”? (Dessa e de milhões de outras...) Em outros termos, por que penalizar
com a perda do bem alguém totalmente inocente, por não ter ele adotado tais
cautelas que somente pessoas com informação jurídica poderiam saber?
Bem, meu pensamento:
ele vai ser penalizado não porque não sabia, mas porque não procurou saber. Veja,
se eu quero construir um prédio, eu não
preciso ser engenheiro – eu contrato um engenheiro. No caso, se eu vou fazer um
negócio jurídico, eu não preciso ter conhecimento jurídico, eu contrato alguém
que o tenha, ou seja, um advogado, para me orientar sobre as formas e possíveis
riscos sobre a operação.
Prezado leitor,
por favor, continue lendo; isso não é uma propaganda, é uma reflexão... (Claro que
ficarei muito feliz em ser contratado – óbvio. Porém, meu comentário é uma
proposta de reflexão ampla, não adstrita a minha área profissional.)
O que quero dizer
é que a cultura geral do povo brasileiro, com todas as suas riquezas, tem
certos pontos a melhorar – uma delas destaco aqui: a falta de profissionalismo
com que tratamos os assuntos da vida prática. A esse traço cultural, chamo de
cultura tabajara, em referência ao conhecido quadro do grupo humorístico Caceta
e Planeta.
Assinamos contratos sem ler – pior, fazemos até contratos grandes meramente “de boca”. Fazemos
concurso sem conhecer o edital. Peticionamos sem ler a lei. Juízes julgam sem
ler as petições. Queremos nos formar lendo apenas resuminhos e notas de aula. Construímos casas sem projeto. Fazemos viagem sem mapa. Em síntese, fazemos as coisas sem saber fazer,
nem buscar formação adequada ou orientação de quem saiba. Claro que, bem entendido,
estou a falar em modo geral e, obviamente, claro que não é sempre assim. Porém,
a mim parece um fato importante a ser percebido.
Faça o leitor a
sua pessoal análise a partir daqui. Penso que a melhoria desse problema geral (supondo que o leitor concorde que exista esse problema) nunca virá “de
fora” – do governo, da escola etc. Qualquer melhoria será construída individualmente,
a partir de nosso esforço pessoal em “nadar contra essa maré tabajara” da
cultura brasileira . Esse esforço, começa com a reflexão individual ora proposta.
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