segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O TERCEIRO NA FRAUDE À EXECUÇÃO – ou, diga-me de quem compras e te direi os problemas em que te metes – ou ainda, a cultura tabajara e o inocente que se dá mal.

INTRODUÇÃO:

Neste texto, destacamos o §2º do art. 794 da Lei 13.105/15 (o novo Código de Processo Civil- NCPC). Para esse escopo, apresentamos sumariamente a idéia geral a respeito da fraude à execução. Após, discutimos o dispositivo citado. Concluímos com algumas reflexões acerca da inserção dessa figura jurídica no contexto cultural brasileiro.

CONCEITOS BÁSICOS:

“Fraude à execução” é expressão um tanto quanto autoexplicativa: alguém que esteja sendo judicialmente executado – ou que saiba que o será – tenta fraudar tal procedimento, ou seja, age para torná-lo ineficaz.

Como isso é feito? O devedor, sabendo que o juiz deverá penhorar em algum momento futuro seus bens por conta da dívida que deixou de pagar, se desfaz desse patrimônio (vendendo, trocando ou doando, por exemplo), a fim de não vê-lo atingido pela penhora que deveria acontecer.

Um pequeno grande detalhe é que, pela lei processual, não é necessária a instauração do processo específico de execução, ou fase de cumprimento de sentença. Instaurado o processo judicial, mesmo em fase de conhecimento, esse procedimento do devedor pode ser considerado, conforme o caso concreto, ato de fraude à execução.

PERSONAGENS:

Nessa situação, temos o credor que está "a ver navios" e move o judiciário para tentar receber seu crédito. Ele será o autor do processo – também chamado de exequente, se o caso for de processo de execução por título extrajudicial, dispensada a fase de conhecimento.

Por outro lado, há o devedor, que não pagou e sofre o processo, sendo réu ou executado, conforme o caso. É ele que, modo geral falando, é o dono do patrimônio que o credor esperava ver penhorado – para depois ser vendido, transformado em dinheiro e, com isso, efetuado o pagamento forçado. É ele, então, que operará a malandragem chamada fraude à execução – já que seu bem virá a ser penhorado, antes disso ele o vende, ou doa, por exemplo, a terceira pessoa. Assim, quando a penhora judicial for determinada, o bem já não é mais dele e, por isso, não poderia ser penhorado – já que a venda foi realizada antes da penhora e, por outro lado, o novo dono nada deve ao credor.

Por fim, há esse tal do “terceiro”. É ele que compra ou recebe em doação o bem em questão. Ele é, portanto, o adquirente do bem. É chamado “terceiro” porque não é parte no processo judicial, nem é parte na relação de dívida entre credor/autor e devedor/réu. Claro que ele é parte, obviamente, no contrato em que faz com o devedor. Nesse contrato ele é parte. Porém, ao se analisar o processo/contrato entre credor/autor e devedor/réu, o adquirente é terceiro – terceiro adquirente.

Um detalhe importante para o que diremos ao final é que ele, terceiro adquirente, pode ou não estar de conluio com o devedor. Ele pode ser um “laranja” do devedor e conhecer todos os seus planos caloteiros. Porém, nem sempre será assim! Ele pode ser um inocente útil – no caso, útil para o devedor. Ou seja, pode haver situações em que o terceiro adquirente não tem nenhuma intenção de ajudar o devedor a fraudar a execução. Ele, terceiro, simplesmente vê o tal bem anunciado e se apresenta para comprá-lo, pagando regularmente pela compra, sem nada saber a respeito dos problemas dos outros dois – credor e devedor. Peço ao leitor que guarde essa idéia, pois voltarei a ela já já.

UMA RÁPIDA DIFERENCIAÇÃO:

Como estou comentando um tema de processo civil, mas sou professor de direito civil material, cabe um rápido comentário neste contexto. A fraude à execução tem a mesma base filosófica de uma figura estudada dentro dos vícios do negócio jurídico. Lá se vê a figura da fraude contra credores (Código Civil, arts. 158 a 165). A idéia geral da coisa é exatamente a mesma – a operação contratual do devedor para esvaziar a futura penhora de seu patrimônio. Porém, além de outros detalhes menores, na fraude contra credores ainda não se tem processo judicial instaurado contra o devedor – disso derivam algumas diferenças, mas não vamos trazê-las aqui, para não desviarmos o foco deste texto.

O OBJETIVO DA FIGURA JURÍDICA:

Pela regra geral da vida, uma dívida só pode ser cobrada de quem é o devedor – ou de algum personagem que a legislação ponha em seu lugar ou ao seu lado. Além disso, também pela regra geral da vida, só podemos fazer o devedor pagar o que deve por intermédio de seu patrimônio – já não podemos mais vendê-lo como escravo, ou obrigá-lo a realizar trabalhos forçados (às vezes, é uma pena que não se possa mais...).

Sabendo disso, o devedor que tem patrimônio, mas quer dar o calote, faz o quê? Transfere o patrimônio para o tal do “terceiro” (lembre-se: pode estar de conluio ou pode ser um inocente útil). Assim, quando o juiz mandar penhorar o bem, será verificado que, não sendo o bem pertencente ao devedor (já que foi transferido), não poderá ser feita a penhora, já que o terceiro não é parte no processo nem é parte na obrigação que está sendo cobrada. Assim, como diz o dito popular, se o terceiro não deve, não teme. Mas deveria...

O terceiro deveria temer a execução porque, se o autor/credor demonstrar para o juiz a ocorrência, no caso, de fraude, aquele bem que o terceiro adquiriu honestamente poderá ser também penhorado para realizar o pagamento forçado de uma dívida que não é sua. Resumindo, configurado que a venda (por exemplo) se deu em regime de fraude à execução, para fins daquele processo será como se não houvesse venda; ou seja, será como se o bem ainda fosse do devedor (e não do terceiro); ou seja, o bem, mesmo tendo mudado de dono, poderá ser igualmente penhorado – repetindo, é este o núcleo central da figura: penhorar um bem que, a rigor, já não é mais daquele que deve pagar.

O TERCEIRO DE BOA-FÉ – OU O INOCENTE ÚTIL:

Como disse, nem sempre o terceiro adquirente está de conluio com o réu/devedor (vendedor). Ele pode ser uma pessoa totalmente boazinha, que paga seus impostos, respeita os limites de velocidade, vai à missa todos os domingos, paga o que deve e, ainda assim, ter sua nova compra “tomada” pelo juiz – mesmo que não soubesse absolutamente de nada a respeito da vida e problemas do credor e do devedor.

O leitor certamente estará pensando: mas ele, terceiro adquirente, ao ver o bem adquirido ser-lhe tomado por uma dívida do réu/devedor (vendedor) poderá pedir seu dinheiro de volta? Sim, claro que poderá. Existe até um nome para isso – o terceiro adquirente, no caso, teria sofrido a chamada evicção. Porém, sublinhamos a palavra “poderá”, acima, para indicar que, embora o terceiro tenha esse direito na lei, acontece que, na vida real, em 99,99% dos casos ele não conseguirá receber nada – o famoso “ganha mas não leva”. Por quê? Ora... Trivial... Se o réu/devedor já não pagou o credor/autor, operando a tal fraude à execução, que dirá o pobre coitado do inocente útil que chegou depois.

O leitor, inteligente, segue perguntando: e o dinheiro que o inocente útil pagou pelo bem? Não pode ser penhorado, tomado de volta? De novo – veja a sublinha mais uma vez: pode (é juridicamente possível). Porém, como diz a canção, “dinheiro na mão é vendaval” e certamente o réu/devedor já deu destino para essa grana, de modo que o terceiro adquirente, embora amparado pela lei, na prática não conseguirá reaver esse dinheiro; vai ser ele quem ficará a ver navios.

UMA RÁPIDA NOTA SOBRE A RÁPIDA DIFERENCIAÇÃO FEITA ACIMA:

Se o caso fosse de fraude contra credores (código civil), não de fraude à execução (processo civil), o inocente útil seria protegido nos casos em que a aquisição se deu de forma onerosa (compra ou troca, por exemplo) – o direito protege a boa-fé (lembre o leitor que estou a falar do “inocente útil”, não do “laranja”). Mas se o caso é de fraude à execução (processo civil), mesmo sendo a alienação onerosa,  mesmo o terceiro pagando pelo bem, poderá o inocente útil ser atingido pela penhora. Isso é importante de se ter em mente ao analisar uma situação concreta.

O DISPOSITIVO PROCESSUAL EM DESTAQUE:

No NCPC, o legislador inseriu um texto interessante – leia-se: art. 792, § 2º.  No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bemTraduzindo em bom português: o inocente útil pode até ser protegido, evitando a penhora, desde que não tenha sido imprudente, incauto. Como assim? Vejamos.

Filosoficamente falando, a idéia primeira é forçar o pagamento ao autor/credor – para isso, permite-se a penhora do bem. A idéia segunda é que o bem a penhorar deve pertencer ao devedor/réu – sendo de outra pessoa, ou seja, pertencendo ao terceiro, não pode ser penhorado (obviamente ressalvados os casos de co-responsáveis, fiadores etc.). A idéia terceira é que se o adquirente comprou/recebeu o bem após o processo haver sido já iniciado contra o devedor, ele, terceiro adquirente, pode se dar mal, não por sua malandragem (não é um laranja), mas por seu descuido – não se importou em tomar o cuidado de saber se o vendedor já está comprometido com outras dívidas. A idéia quarta – por fim – é que o adquirente não pode ser penalizado com a penhora (e futura perda do bem) se ele, adquirente, não tinha como saber da existência de processos contra o vendedor – ou seja, se, apesar de cuidadoso, não pôde descobrir a existência de processo pendente contra o vendedor por motivos afetos à dinâmica da burocracia processual. (Digamos assim, ele não viu o problema, não porque não tenha olhado, mas porque olhou e não estava lá - ou estava, mas de forma invisível) Bom senso, não?

Então segue a próxima pergunta: como é que alguém interessado em comprar um objeto pode ficar sabendo da existência de ações contra o réu/devedor (vendedor)? Por dois caminhos. Sendo bens que possuem registro em cartório (sobretudo imóveis, por exemplo), verificando exatamente a situação atual do registro. Lá estarão anotadas virtualmente todas as situações jurídicas que possam afetar aquele patrimônio. Agora, por outro lado, sendo um bem que não possui registro (móveis modo geral – computadores, maquinários, rebanho de animais etc.; os carros possuem registro no Detran e escapam dessa lista), o interessado em adquiri-lo pode pedir certidões de distribuição nos cartórios judiciais a respeito da pessoa do vendedor. Com essas certidões, então,  poderá saber se contra o vendedor há ou não ações judiciais pendentes.

Acima sublinhei a palavra “poderá” para aqui destacar – esse "poderá", na verdade, segundo o código, é um deverá. Explico. Se o interessado em comprar o bem não pedir as tais certidões, por isso não ficar sabendo da existência de processos contra o vendedor, caso o vendedor perca os tais processos, o bem vendido poderá ser penhorado, mesmo o terceiro adquirente estando inocente na história – ele até é inocente, mas foi incauto; podia/devia ter tomado o cuidado de se informar, mas não o fez; por isso será afetado pelos problemas que, na verdade, originalmente eram apenas daquele que lhe vendeu o bem (parafraseando a Bíblia, diga-me de quem compras e te direi os problemas em que te metes).

Em síntese, o que o texto destacado do NCPC fez foi dizer que, se você pretende comprar um bem de João, cabe a você investigar a situação do bem (junto ao cartório de registro de imóveis ou Detran, por exemplo) e do João (junto aos cartórios judiciais de distribuição de processos, pelo menos).

Claro que essas cautelas tomam tempo e dinheiro. Na vida real, se alguém vai comprar um bem de valor pouco expressivo, talvez esse cuidado possa mesmo ser dispensado, numa análise de relação entre risco e custo-benefício que se faz até intuitivamente. Porém, se a compra é de um bem de maior valor, por exemplo maquinários em geral, um carro, rebanhos – ou, que tal, quotas de participação em sociedades limitadas, direitos sobre marcas etc. – aí a cautela se impõe.

UMA NOTA SOBRE NOSSO TRAÇO CULTURAL:

A exposição jurídica acabou, mas convido o leitor a continuar. A pergunta que imagino ser feita ao final dessa exposição é: como alguém que é um leigo em questões jurídicas pode saber disso tudo? Ou seja, como exigir que todos saibam dessa “filigrana jurídica”? (Dessa e de milhões de outras...) Em outros termos, por que penalizar com a perda do bem alguém totalmente inocente, por não ter ele adotado tais cautelas que somente pessoas com informação jurídica poderiam saber?

Bem, meu pensamento: ele vai ser penalizado não porque não sabia, mas porque não procurou saber. Veja, se eu quero construir um prédio, eu  não preciso ser engenheiro – eu contrato um engenheiro. No caso, se eu vou fazer um negócio jurídico, eu não preciso ter conhecimento jurídico, eu contrato alguém que o tenha, ou seja, um advogado, para me orientar sobre as formas e possíveis riscos sobre a operação.

Prezado leitor, por favor, continue lendo; isso não é uma propaganda, é uma reflexão... (Claro que ficarei muito feliz em ser contratado – óbvio. Porém, meu comentário é uma proposta de reflexão ampla, não adstrita a minha área profissional.)

O que quero dizer é que a cultura geral do povo brasileiro, com todas as suas riquezas, tem certos pontos a melhorar – uma delas destaco aqui: a falta de profissionalismo com que tratamos os assuntos da vida prática. A esse traço cultural, chamo de cultura tabajara, em referência ao conhecido quadro do grupo humorístico Caceta e Planeta.

Assinamos contratos sem ler – pior, fazemos até contratos grandes meramente “de boca”. Fazemos concurso sem conhecer o edital. Peticionamos sem ler a lei. Juízes julgam sem ler as petições. Queremos nos formar lendo apenas resuminhos e notas de aula. Construímos casas sem projeto. Fazemos viagem sem mapa. Em síntese, fazemos as coisas sem saber fazer, nem buscar formação adequada ou orientação de quem saiba. Claro que, bem entendido, estou a falar em modo geral e, obviamente, claro que não é sempre assim. Porém, a mim parece um fato importante a ser percebido.


Faça o leitor a sua pessoal análise a partir daqui. Penso que a melhoria desse problema geral (supondo que o leitor concorde que exista esse problema) nunca virá “de fora” – do governo, da escola etc. Qualquer melhoria será construída individualmente, a partir de nosso esforço pessoal em “nadar contra essa maré tabajara” da cultura brasileira . Esse esforço, começa com a reflexão individual ora proposta. 

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