segunda-feira, 12 de outubro de 2015

QUE JUDICIÁRIO QUEREMOS? ou, segundo o Evangelho, o Judiciário vai para o inferno...

O CASO:


No escritório, ganho em parte um pedido inicial. O juiz considera a sucumbência recíproca e condena as partes em honorários à razão de 30% (contra meu cliente) e 70% (a favor do meu cliente - ou seja, a meu favor). Ocorre que o juiz determina a compensação - ou seja, o vencido paga apenas o "troco" de 40%. Aos olhos do leigo, pode parecer normal, mas sabemos que os honorários de sucumbência são direito do próprio advogado, não da parte. Dessa forma, a compensação não poderia acontecer.



Insatisfeito (claro!), fui "fuçar" os entendimentos sobre o tema. A discussão jurídica versa sobre o conflito entre o CPC, art. 21 (determina a compensação) e o Estatuto da Advocacia, Lei 8.906/94, em seu art. 23 (determina que honorários são direito autônomo do advogado - o que afastaria a compensação). O aluno de introdução ao Direito sabe que, sendo o Estatuto lei posterior, deveria afastar a incidência do CPC.



O JULGAMENTO:



Eu não fui o primeiro a questionar essa "compensação" de direitos alheios (direito do advogado compensado com direito da parte). A questão bateu nos tribunais inúmeras vezes. Ao chegar ao STJ, os processos recebiam julgamentos divergentes, ensejando, depois, em 2004, a unificação do entendimento por meio do verbete 306 da Súmula de Jurisprudência dessa Casa. Um dos julgados de referência para esse verbete foi o REsp 290.141 RS, julgado pela Corte Especial.



O VOTO VENCIDO:



Nesse julgado, o relator originário, Min. Meneses Direito, disse o óbvio: se o Estatuto é posterior, afasta o CPC. Se a lei nova determina que os honorários são direito autônomo do Advogado, e não da parte, será inviável a compensação, a qual só se permite entre credores e devedores recíprocos. O voto técnico do min. Meneses Direito foi acompanhado por mais dois ministros - Eliana Calmon e Peçanha Martins.



O VOTO VENCEDOR:



Foi vencedor, porém, o entendimento do Min. Antônio de Pádua Ribeiro, acompanhado por mais nove ministros. Decidiram suas excelências que CPC e Estatuto se combinam da seguinte forma: o direito do advogado é autônomo (Estatuto), mas só após a compensação (CPC).



(A FALTA DE) FUNDAMENTO DO VOTO VENCEDOR:



O que causa espécie e indignação não é o "resultado final", mas o "fundamento" adotado - ou melhor, essa verdadeira e rasgada falta de fundamentação. O caso é tão gritante que precisa ser transncrito, não cabendo ser parafraseado. Litteris:



"MIN. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO: (...) Penso que essa solução é a que tornará mais fácil a atuação dos vários órgãos desta Corte. Se optarmos pela revogação, haverá dificuldade imensa, em concreto, em termos de fixação de verbas de honorários de advogado, porque muitas vezes só sobem para o Tribunal questões relativas a verbas acessórias como juros moratórios, juros compensatórios, correção monetária, e outras verbas. Isso, evidentemente, gera dificuldade para estipular com perfeição, com clareza, nesta instância, o valor exato da verba advocatícia. É matéria que, uma vez fixada a sucumbência recíproca, é liquidada, em regra, perante o juiz de Primeiro Grau." (Obviamente, grifo nosso.)



TRADUZINDO PARA QUEM NÃO ENTENDEU: 



Em outras palavras, o Min. disse o seguinte: não interessa o Direito e a Lei; como o posicionamento pela proibição de compensar criará certas dificuldades para o Judiciário, vamos afastar esse entendimento e adotar outro. Ponto final. Só isso. Amém, Jesus. Acabou. Eu tenho a caneta e é assim que vou decidir, porque assim é mais fácil para mim, não porque eu tenha argumentos jurídicos e técnicos...



Espero ansiosamente que seja claro para todos que quando o Relator disse que os dois diplomas, CPC e Estatuto, se combinam, ele fez apenas e simplesmente isso - ele afirmou, concluiu, mas ele NÃO argumentou, não fundamentou, não justificou sua conclusão. (Não cito o texto do acórdão na íntegra, mas os interessados poderão localizá-lo no site do STJ, confirmando a ausência de fundamentação.)



(Neste momento, meu aluno que tomou canetada em sua prova, se estiver aqui lendo este texto, vai pensar: então eu, aluno, tenho que fundamentar minha resposta, não sendo suficiente que afirme meu entendimento, mas o Min. Relator, um magistrado real julgando um processo real, pode fazê-lo?! E a resposta é: não devia, mas vejam como são as coisas - eles fazem!)



A questão é revoltante porque retrata caso - não raro, lembre-se! - em que o Julgador sequer se deu ao trabalho de construir uma fundamentação pobre. Ele simplesmente estatuiu - é assim, e será assim porque é mais cômodo.



A PERDIÇÃO DO JUDICIÁRIO, SEGUNDO O EVANGELHO: 



Não temos como evitar lembrar a passagem dos Evangelhos em que Jesus recomenda seguir pela estrada estreita, porque larga é a estrada que leva à perdição e muitos andam por ela. O caso narrado é apenas um dentre uma infinidade de outros que vemos diariamente nas instâncias menores e médias.



A verdadeira questão aqui, peço que o leitor entenda, não é se o advogado vai ganhar ou perder, mas como funciona o Judiciário. Porque isso não é um caso isolado - mas, antes, um paradigma de funcionamento. 



Muito embora nossa Constituição determine que toda decisão deve ser motivada, isso é trabalho cansativo e muitas vezes (aqui está!) impeditivo de que se decida conforme se deseja. Em outras palavras, voltando ao exemplo citado, houvesse o Min. Antônio de Pádua Ribeiro buscado fundamento/argumento para sua decisão, quiçá não o encontrasse e, assim, haveria de decidir de modo diverso. Ou, ainda que decidisse como decidiu, sua decisão poderia ser contestada em seus próprios argumentos.



Então a perdição se revela - quando o dever de fundamentar não é cumprido, o Poder investido ao magistrado em nome do Estado vira ferramenta de decisionismo casuístico e incoerente e sua utilização sem as balizas e limites do dever de argumentar caracteriza excesso de poder.



Quem perde é a sociedade, à reboque de um Poder desenfreado, decidindo casos não com base no Direito, mas com base no que é mais cômodo... E vamos todos pela estrada larga e pavimentada - o julgamento "correto" que se dane; ficamos com o prático/fácil. Muito bem, Brasil.

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