terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

MODERNIZAÇÃO DO NCPC - ou, diálogo entre direito material e processual; ou, ainda, a importância da ferramenta certa.

INTRODUÇÃO:

No estudo da teoria jurídica, é usual a distinção entre direito material e direito processual. Para entender rapidamente: pense que, no caso do Direito Civil, o direito “material” corresponde ao Código Civil; o direito “processual”, ao Código de Processo Civil. Outras expressões usadas são direito “substantivo” (material) e direito “adjetivo” (processual) – dizem exatamente a mesma coisa. (Se você sofrer da mesma doença que eu, vai gostar de ficar brincando com o significado etimológico dessas expressões e suas idéias filosóficas – material/substantivo vs processual/adjetivo.)

Para refletir teoricamente, pense que o direito material corresponde ao conjunto de normas (direito objetivo) que define os direitos que se tem; o processual, aos ritos burocráticos para proteger/efetivar, junto ao Poder Público, os direitos ameaçados/violados. Simples, não? Dito isso, podemos acrescentar ao que ficou registrado acima dizendo que é possível encontrar normas de direito material no código processual, assim como normas processuais no código civil. Não vou parar para procurar exemplos porque acho que a simples idéia já basta – cada um, em seu estudo, vai se deparar com esses exemplos; não é importante para este comentário trazê-los aqui.

PROCESSUALISTAS, EN GARDE!!!

Pelos idos de 1980-90, o estudo do Direito Processual ganhou destaque no Brasil. Falo por memória de comentários de meus professores, em minha graduação. Não tenho dados exatos – mas também não importam as datas aqui. O que importa é que houve um crescimento elevado do número de processualistas.

Isso teve um produto e um subproduto, um efeito colateral ruim, digamos. O produto foi o óbvio desenvolvimento da ciência processualística. O subproduto foi o infeliz crescimento de uma noção de que o processo existe como fim em si mesmo. Obviamente que nenhum processualista nunca, nunquinha vai dizer isso com todas as letras... Porém, isso aconteceu. Claro, não de modo absoluto, mas aconteceu. A observação das regras de processo muitas vezes foi vista como algo mais importante do que o mérito que estava sendo discutido no caso.

De novo, não vou pesquisar exemplos em julgados reais, o leitor interessado poderá encontrá-los em seus estudos. Porém, como ilustração, imagine-se que, em uma ação de divórcio litigioso, um dos cônjuges, autor, requer a partilha sobre os bens ‘x’, ‘y’ e ‘z’; o outro cônjuge, réu, concorda com a partilha, porém acrescenta que, na verdade, há ainda o bem ‘p’ a ser incluído e partilhado; todavia, o cônjuge réu fez esse requerimento dentro da própria peça de contestação – ou seja, não escrevendo a peça separada da reconvenção (para o leitor leigo: você pode entender que a reconvenção é um pedido feito pelo réu contra o autor que lhe processou originalmente, dentro do mesmo processo). Daí, neste cenário, vem o Tribunal e diz que o cônjuge réu não pode discutir a partilha do bem ‘p’...

Insatisfeitos, perguntamos: por que, Tribunal, negaste a partilha do bem ‘p’? Acaso não é bem do casal? Acaso não é bem da comunhão/partilha? O Tribunal nos responde: não por isso... De fato é da comunhão, é da partilha, mas você não fez o pedido num papelzinho separado (chamado peça de reconvenção). Como você fez o pedido no mesmo papelzinho (chamada peça de contestação), você terá o seu direito (material) à partilha negado, não porque não tenha o direito (material), mas porque desobedeceu à norma (processual) que determina fazer o pedido no papelzinho (petição) separada (reconvenção)... (Observação a latere: gosto muito de chamar as petições e sentenças de “papelzinho”. Penso que isso tem uma poderosa função didática de desmistificar esses documentos... Enfim, assunto para outro comentário.)

Ora, seu Tribunal, faça-me o favor!!! A história é real e aconteceu (ainda acontece) inúmeras vezes... Desculpe, mas só uma mente completamente obnubilada pode realizar um julgado desse naipe... Esse é um exemplo – acho – bem interessante que ilustra o que chamei de “subproduto”, ou “efeito colateral”. O problema está na sobreposição do instrumento à finalidade!!!

Explico. Se eu quero pregar um prego na minha parede (finalidade, pregar), eu preciso de um martelo (ferramenta). Daí eu mando meu empregado “pregar o prego usando martelo”. Enquanto isso, vou ali na esquina tomar um sorvete. Quando volto, vejo que o prego está pregado (finalidade cumprida), mas percebo que o empregado não usou um martelo... Ele usou, sei lá, um alicate (ferramenta diferente da indicada). O que uma pessoa normal faria? Você, leitor? Mandaria o empregado retirar o prego e pregá-lo novamente usando o martelo? Se você respondeu que sim, você tem a característica do subproduto processualístico que estou aqui atacando. Lamento pela sua alma.

FAZENDO AS PAZES:

Não me entendam (tão) mal... (Só um pouco...) Não digo que as normas processuais (instrumentais) sejam inúteis ou desimportantes. Pelo amor de deus, não disse isso. As normas processuais são algo da mais absoluta importância dentro do sistema democrático. É justamente a existência de normas processuais que impede (dificulta, ao menos) a ocorrência de arbítrios, favorecimentos e outras mazelas do tipo. O que disse é algo mais brando e tranquilo de ser entendido: direito processual é instrumento do direito material – o que não quer dizer que seja menor!!! Quer dizer apenas o que diz – ou seja, é instrumento.

Agora, veja bem. Isso quer dizer que não é importante a existência de ferramentas adequadas? Que não é importante a compreensão do uso correto dos instrumentos? Que não é importante usar corretamente o martelo – e a reconvenção? Claro que não é isso que quero dizer, oras! É, sim, de extrema importância! Inegável! Porém, sigamos entendendo que um é um, outro é outro – e cada um tem uma filosofia (um lugar teórico) definido, não se devendo trocar um pelo outro.

ONDE QUERO CHEGAR – AVANÇOS NO NOVO CPC:

Quero dizer que nós – advogados, juízes, legisladores, professores, estudantes – temos que entender essa relação dinâmica entre finalidade e instrumento. Direito material e direito processual se relacionam de modo íntimo – assim como o martelo e a fixação do prego. Dispor das ferramentas processuais adequadas, a partir de uma legislação atualizada, e saber manejá-las apropriadamente, a partir do estudo e da experiência, é condição sine qua non para a proteção/efetivação do direito material ameaçado/violado. (Afinal, é para isso que estamos aqui, certo? Advogados, juízes, professores? Trabalhamos em conjunto, cada um com sua função, para proteger/efetivar direitos – não para você ter uma estabilidadezinha no seu carguinho público, ok? Mas isso é mais um comentário a latere)

A Lei 13.105/2015, o novo Código de Processo Civil – NPCC, incorporou em seu texto alguns importantes pontos teóricos que a doutrina havia construído, com o respaldo da jurisprudência, no sentido de efetivar o direito material ao crédito (credor não pago, que quer receber forçadamente contra o devedor caloteiro).

Agora estão mais claras e melhor definidas no texto do NCPC certas figuras importantes quando o assunto é “cobrança” (execução por quantia certa). Afinal, afora toda a linda e poética filosofia do patrimônio mínimo, do mínimo existencial etc. e etc. – filosofias importantes e justas, claro, mas que têm foco na proteção do devedor –, devemos sempre lembrar que o credor tem o justo direito de ser pago. Com o perdão do aparente pleonasmo “justo direito”. Nossa moralidade muitas vezes vê o credor, que está cobrando, como malvado, vilão, ganancioso e por aí vai... Essa visão é distorcida e precisa ser repensada – mas isso já é, novamente, uma digressão para outro texto.

Ao buscar o pagamento forçado de uma dívida que não foi paga voluntariamente, o Direito permite ao credor, por meio do Poder Público, “invadir” o patrimônio do devedor. Só que muitas e muitas vezes, não achamos patrimônio assim, de modo fácil, como dinheiro na conta (seria o mundo ideal – na escala de prazeres do advogado, depois de “expeça-se o alvará”, a expressão mais linda de ser lida é “Bacenjud frutífero; penhora efetuada em valor integral”). Muitas vezes temos que descobrir patrimônio diluído de várias formas. Não é raro precisarmos pedir, por exemplo, a penhora da renda do aluguel de certo imóvel, a penhora das quotas/ações de um sócio em determinada pessoa jurídica, ou do próprio estabelecimento comercial, ou seu faturamento.

Essas idéias estão absolutamente tranquilas no ordenamento jurídico, quando se as estuda teoricamente. Porém, muitas vezes o Judiciário as recusa, às vezes por um motivo correto, mas muitas outras vezes por simples falta de compreensão da teoria jurídica... O NCPC, então, incorporou em seu texto muitas dessas idéias, definindo de modo mais adequado regras para essas ferramentas. Penhora de créditos (art. 855), penhora de quotas/ações de sociedades (art. 861), penhora da empresa ou de seu estabelecimento (art. 862), penhora de percentual de faturamento (art. 866) e penhora de frutos e rendimentos (art. 867) são exemplos dessas atualizações.

Antes, eu usei a metáfora do martelo/pregar o prego. Não vou voltar e reescrever o texto, mas pense agora, por favor, na relação machado/cortar madeira. O que o legislador fez, com essas definições mais precisas, representa um ato de “afiar o machado”. A legislação processual se tornou, nesse ponto, mais atual e mais adequada.


Quem ganha? Os processualistas? Ou os civilistas? Quem ganha, prezado leitor, é você mesmo, eu também, enfim, a sociedade. Passamos a ter ferramentas mais adequadas para a realização dos direitos estabelecidos.

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