INTRODUÇÃO:
No estudo da
teoria jurídica, é usual a distinção entre direito material e direito processual.
Para entender rapidamente: pense que, no caso do Direito Civil, o direito “material”
corresponde ao Código Civil; o direito “processual”, ao Código de Processo
Civil. Outras expressões usadas são direito “substantivo” (material) e direito “adjetivo”
(processual) – dizem exatamente a mesma coisa. (Se você sofrer da mesma doença
que eu, vai gostar de ficar brincando com o significado etimológico dessas
expressões e suas idéias filosóficas – material/substantivo vs processual/adjetivo.)
Para refletir
teoricamente, pense que o direito material corresponde ao conjunto de normas (direito
objetivo) que define os direitos que se tem; o processual, aos ritos
burocráticos para proteger/efetivar, junto ao Poder Público, os direitos ameaçados/violados.
Simples, não? Dito isso, podemos acrescentar ao que ficou registrado acima
dizendo que é possível encontrar normas de direito material no código
processual, assim como normas processuais no código civil. Não vou parar para
procurar exemplos porque acho que a simples idéia já basta – cada um, em seu
estudo, vai se deparar com esses exemplos; não é importante para este
comentário trazê-los aqui.
PROCESSUALISTAS, EN GARDE!!!
Pelos idos de
1980-90, o estudo do Direito Processual ganhou destaque no Brasil. Falo por
memória de comentários de meus professores, em minha graduação. Não tenho dados
exatos – mas também não importam as datas aqui. O que importa é que houve um
crescimento elevado do número de processualistas.
Isso teve um
produto e um subproduto, um efeito colateral ruim, digamos. O produto foi o
óbvio desenvolvimento da ciência processualística. O subproduto foi o infeliz crescimento
de uma noção de que o processo existe como fim em si mesmo. Obviamente que
nenhum processualista nunca, nunquinha vai dizer isso com todas as letras...
Porém, isso aconteceu. Claro, não de modo absoluto, mas aconteceu. A observação
das regras de processo muitas vezes foi vista como algo mais importante do que
o mérito que estava sendo discutido no caso.
De novo, não vou
pesquisar exemplos em julgados reais, o leitor interessado poderá encontrá-los
em seus estudos. Porém, como ilustração, imagine-se que, em uma ação de
divórcio litigioso, um dos cônjuges, autor, requer a partilha sobre os bens ‘x’,
‘y’ e ‘z’; o outro cônjuge, réu, concorda com a partilha, porém acrescenta que,
na verdade, há ainda o bem ‘p’ a ser incluído e partilhado; todavia, o cônjuge réu
fez esse requerimento dentro da própria peça de contestação – ou seja, não
escrevendo a peça separada da reconvenção (para o leitor leigo: você pode entender
que a reconvenção é um pedido feito pelo réu contra o autor que lhe processou
originalmente, dentro do mesmo processo). Daí, neste cenário, vem o Tribunal e
diz que o cônjuge réu não pode discutir a partilha do bem ‘p’...
Insatisfeitos, perguntamos:
por que, Tribunal, negaste a partilha do bem ‘p’? Acaso não é bem do casal? Acaso
não é bem da comunhão/partilha? O Tribunal nos responde: não por isso... De
fato é da comunhão, é da partilha, mas você não fez o pedido num papelzinho
separado (chamado peça de reconvenção). Como você fez o pedido no mesmo
papelzinho (chamada peça de contestação), você terá o seu direito (material) à
partilha negado, não porque não tenha o direito (material), mas porque
desobedeceu à norma (processual) que determina fazer o pedido no papelzinho
(petição) separada (reconvenção)... (Observação a latere: gosto muito de chamar as petições e sentenças de “papelzinho”.
Penso que isso tem uma poderosa função didática de desmistificar esses
documentos... Enfim, assunto para outro comentário.)
Ora, seu Tribunal,
faça-me o favor!!! A história é real e aconteceu (ainda acontece) inúmeras
vezes... Desculpe, mas só uma mente completamente obnubilada pode realizar um
julgado desse naipe... Esse é um exemplo – acho – bem interessante que ilustra
o que chamei de “subproduto”, ou “efeito colateral”. O problema está na sobreposição
do instrumento à finalidade!!!
Explico. Se eu
quero pregar um prego na minha parede (finalidade, pregar), eu preciso de um martelo
(ferramenta). Daí eu mando meu empregado “pregar o prego usando martelo”. Enquanto
isso, vou ali na esquina tomar um sorvete. Quando volto, vejo que o prego está
pregado (finalidade cumprida), mas percebo que o empregado não usou um
martelo... Ele usou, sei lá, um alicate (ferramenta diferente da indicada). O que
uma pessoa normal faria? Você, leitor? Mandaria o empregado retirar o prego e
pregá-lo novamente usando o martelo? Se você respondeu que sim, você tem a
característica do subproduto processualístico que estou aqui atacando. Lamento
pela sua alma.
FAZENDO AS PAZES:
Não me entendam
(tão) mal... (Só um pouco...) Não digo que as normas processuais
(instrumentais) sejam inúteis ou desimportantes. Pelo amor de deus, não disse
isso. As normas processuais são algo da mais absoluta importância dentro do
sistema democrático. É justamente a existência de normas processuais que impede
(dificulta, ao menos) a ocorrência de arbítrios, favorecimentos e outras
mazelas do tipo. O que disse é algo mais brando e tranquilo de ser entendido:
direito processual é instrumento do direito material – o que não quer dizer que
seja menor!!! Quer dizer apenas o que diz – ou seja, é instrumento.
Agora, veja bem.
Isso quer dizer que não é importante a existência de ferramentas adequadas? Que
não é importante a compreensão do uso correto dos instrumentos? Que não é
importante usar corretamente o martelo – e a reconvenção? Claro que não é isso
que quero dizer, oras! É, sim, de extrema importância! Inegável! Porém, sigamos
entendendo que um é um, outro é outro – e cada um tem uma filosofia (um lugar
teórico) definido, não se devendo trocar um pelo outro.
ONDE QUERO CHEGAR
– AVANÇOS NO NOVO CPC:
Quero dizer que
nós – advogados, juízes, legisladores, professores, estudantes – temos que
entender essa relação dinâmica entre finalidade e instrumento. Direito material
e direito processual se relacionam de modo íntimo – assim como o martelo e a
fixação do prego. Dispor das ferramentas processuais adequadas, a partir de uma
legislação atualizada, e saber manejá-las apropriadamente, a partir do estudo e
da experiência, é condição sine qua non
para a proteção/efetivação do direito material ameaçado/violado. (Afinal, é
para isso que estamos aqui, certo? Advogados, juízes, professores? Trabalhamos em
conjunto, cada um com sua função, para proteger/efetivar direitos – não para
você ter uma estabilidadezinha no seu carguinho público, ok? Mas isso é mais um
comentário a latere)
A Lei
13.105/2015, o novo Código de Processo Civil – NPCC, incorporou em seu texto
alguns importantes pontos teóricos que a doutrina havia construído, com o
respaldo da jurisprudência, no sentido de efetivar o direito material ao
crédito (credor não pago, que quer receber forçadamente contra o devedor
caloteiro).
Agora estão mais claras e melhor definidas no texto do NCPC certas figuras importantes quando o
assunto é “cobrança” (execução por quantia certa). Afinal, afora toda a linda
e poética filosofia do patrimônio mínimo, do mínimo existencial etc. e etc. –
filosofias importantes e justas, claro, mas que têm foco na proteção do devedor
–, devemos sempre lembrar que o credor tem o justo direito de ser pago. Com o
perdão do aparente pleonasmo “justo direito”. Nossa moralidade muitas
vezes vê o credor, que está cobrando, como malvado, vilão, ganancioso e por aí
vai... Essa visão é distorcida e precisa ser repensada – mas isso já é,
novamente, uma digressão para outro texto.
Ao buscar o
pagamento forçado de uma dívida que não foi paga voluntariamente, o Direito
permite ao credor, por meio do Poder Público, “invadir” o patrimônio do
devedor. Só que muitas e muitas vezes, não achamos patrimônio assim, de modo
fácil, como dinheiro na conta (seria o mundo ideal – na escala de prazeres do
advogado, depois de “expeça-se o alvará”, a expressão mais linda de ser lida é “Bacenjud
frutífero; penhora efetuada em valor integral”). Muitas vezes temos que descobrir
patrimônio diluído de várias formas. Não é raro precisarmos pedir, por exemplo,
a penhora da renda do aluguel de certo imóvel, a penhora das quotas/ações de um
sócio em determinada pessoa jurídica, ou do próprio estabelecimento comercial,
ou seu faturamento.
Essas idéias
estão absolutamente tranquilas no ordenamento jurídico, quando se as estuda
teoricamente. Porém, muitas vezes o Judiciário as recusa, às vezes por um
motivo correto, mas muitas outras vezes por simples falta de compreensão da
teoria jurídica... O NCPC, então, incorporou em seu texto muitas dessas idéias,
definindo de modo mais adequado regras para essas ferramentas. Penhora de
créditos (art. 855), penhora de quotas/ações de sociedades (art. 861), penhora
da empresa ou de seu estabelecimento (art. 862), penhora de percentual de faturamento
(art. 866) e penhora de frutos e rendimentos (art. 867) são exemplos dessas
atualizações.
Antes, eu usei a
metáfora do martelo/pregar o prego. Não vou voltar e reescrever o texto, mas
pense agora, por favor, na relação machado/cortar madeira. O que o legislador
fez, com essas definições mais precisas, representa um ato de “afiar o machado”.
A legislação processual se tornou, nesse ponto, mais atual e mais adequada.
Quem ganha? Os processualistas?
Ou os civilistas? Quem ganha, prezado leitor, é você mesmo, eu também, enfim, a
sociedade. Passamos a ter ferramentas mais adequadas para a realização dos
direitos estabelecidos.
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