No estudo do Direito, aprendemos
uma série de comandos normativos – regras e princípios – e suas inter-relações.
Aprendemos sobre o sistema organizado hierarquicamente e a forma como
relacionar normas de diferentes hierarquias. Aprendemos sobre subsunção e sobre
ponderação. Aprendemos sobre as interpretações já estabelecidas para casos
relevantes. Porém, isso pode ser o bastante em determinados contextos, mas não
esgota a compreensão do fenômeno jurídico. Para alcançar uma percepção mais
profunda, será necessário sair do âmbito técnico jurídico. Em outras palavras,
para entender profundamente o Direito, é necessário compreender temas não
jurídicos.
Para ilustrar o que disse, vamos
imaginar que o leitor, advogado, receba em seu escritório um cliente que peça
uma consulta jurídica para saber se determinada conduta é ou não admitida pelo
Direito. Ou que o leitor, juiz, tenha que julgar um processo a respeito de tal
conduta. A análise da permissão ou proibição da conduta pode ser feita em
níveis diferentes de profundidade. Vamos exemplificar com um diálogo
imaginário.
Primeiro nível:
- Tal conduta é válida?
- Não.
- Por quê?
- Porque há uma lei proibindo.
Segundo nível:
- Mas essa lei proibitiva é
válida?
- Sim.
- Por quê?
- Porque a constituição a
respalda.
(Poderíamos, por outro lado, derivar o exemplo. Poderíamos imaginar a
alternativa igualmente interessante: - Mas por que foi feita uma lei para
proibir essa conduta? Qual o bem que se quer alcançar com essa proibição? A lei
proibitiva é um meio apto a alcançar essa finalidade proposta?)
Terceiro nível:
- Mas a sua interpretação da
constituição é válida?
- Sim.
- Por quê?
- Porque o Supremo Tribunal
Federal entende desse modo.
Quarto nível:
- Mas por que exatamente essa
interpretação, desses ministros, é válida? E se esses mesmos ministros mudassem
de opinião, proferindo entendimento diverso para o mesmo problema? E ainda pior!!!
Se esses mesmos ministros proferissem entendimento contrário a determinado
dispositivo literal da constituição? Por que essa interpretação seria válida?
- Porque... Porque... Porque...
(Aqui poderíamos ir até mais longe, chegando aos indivíduos que
funcionaram como Poder Constituinte no passado... Mas fiquemos no simples.)
Esse diálogo imaginário
representa de modo resumido os níveis de análise a que podemos descer ao
estudarmos um determinado problema jurídico. Numa situação real, com detalhes
de um caso concreto, poderiam ser ditas milhares de coisas a mais. Um dos
níveis poderia, a depender dos detalhes do caso concreto, ser mais detalhado e
debatido que outro. Entretanto, quisemos apenas apresentar uma estrutura geral
que será aproximadamente a mesma nos debates jurídicos em geral. Essa visão
sintética nos permite fazer as observações que desejamos apontar neste texto.
A primeira observação é que, até
o terceiro nível, embora estejamos aprofundando a análise, continuamos no
âmbito do sistema normativo. De modo simples, justificamos a conduta com base
na lei (norma), justificamos a lei com base na constituição (norma de maior
hierarquia) e justificamos a interpretação com base no órgão que a profere, com
base na definição constitucional. Porém, no quarto nível, não importa qual a
resposta que se dê, estaremos saindo do âmbito normativo e ingressando numa
investigação político-sociológica. Saímos da norma e ingressamos na análise das
relações de poder de uma sociedade.
A segunda observação é que a passagem
de um nível a outro nem sempre é feita no dia a dia dos fóruns. Só se faz esse
aprofundamento quando há uma excepcional motivação sócio-política para tanto.
No mais das vezes, o primeiro nível é o que basta à resolução de problemas
jurídicos levados a tribunais. Por incrível ou estranho que pareça, é assim que
funciona. Você não verá um juiz de primeira instância fazendo a mínima reflexão
sobre constitucionalidade para decidir sobre um despejo comum. Não que seja impossível
perceber questões constitucionais nessa situação. Simplesmente não haverá, modo
geral, motivação ou interesse em aprofundar uma discussão que parte de um
problema de menor impacto social.
A terceira observação é que
somente entenderemos verdadeiramente o Direito quando chegarmos ao quarto
nível, onde percebemos que o Direito é um fenômeno respaldado/sustentado
socialmente por elementos não normativos, exteriores ao estudo técnico-jurídico.
O Direito não se sustenta por si, ele depende, para viger, de fatores estranhos
às normas e conceitos que o compõem. Eis, portanto, o meu ponto: você pode
tentar justificar o Direito com base nele mesmo, ou seja, analisar se
determinada conduta é permitida ou proibida com base na lei. Porém, ao descer a
níveis mais profundos de análise/justificação, você precisará chegar às
relações de poder político-social que permitem fazer o comando normativo
teórico ser implementado no mundo concreto das pessoas de carne e osso.
Então, aí veremos com clareza que
Direito e Poder andam de mãos dadas desde que o mundo é mundo e, embora
tenhamos, ao longo da história, criado sistemas mais complexos e intrincados, a
verdade última das relações sociais continua sendo determinada pela força.
Talvez não mais a força dos músculos, pois hoje temos armas. Talvez não mais
pela força de um só, pois hoje temos setores sociais que se interinfluenciam e
se combatem ou se apoiam. Talvez não mais a força física/bélica apenas, pois
temos hoje mecanismos de pressão econômica, opinião pública etc. Porém, ainda
assim, o Direito não se encerra num sistema teórico puramente normativo. O
Direito é o fruto resultante do turbilhão de forças político-sociais em
incessante interação numa dada sociedade.
Por isso, então, que o estudo do
Direito depende, para seu aprofundamento e completude, que se avance sobre elementos
extra jurídicos. Claro que é possível viver do Direito (profissionalmente falando) sem pretensões tão ambiciosas. Nem todos
desejam ou precisam se preocupar com essas questões oceânicas. Porém, se se
desejar atingir um entendimento profundo, será necessário forjar seu espírito
com muito mais do que o mero estudo normativo. Filosofia, sociologia,
antropologia, história, economia e psicologia são ciências obviamente necessárias.
Contudo, ainda mais do que isso, uma formação humanística ampla, envolvendo as
artes em geral, sobretudo a literatura em suas várias formas, por exemplo,
também são essenciais. Entender o Direito é entender a sociedade na qual ele se
insere; entender a sociedade é entender o ser humano que a compõe. O desafio é
gigantesco. O trabalho é infindável. Porém, me parece ser esse o caminho. Eu
não recomendaria nenhuma outra estrada.
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