domingo, 11 de setembro de 2016

APRENDENDO O DIREITO - A VERDADE ESTÁ LÁ FORA

No estudo do Direito, aprendemos uma série de comandos normativos – regras e princípios – e suas inter-relações. Aprendemos sobre o sistema organizado hierarquicamente e a forma como relacionar normas de diferentes hierarquias. Aprendemos sobre subsunção e sobre ponderação. Aprendemos sobre as interpretações já estabelecidas para casos relevantes. Porém, isso pode ser o bastante em determinados contextos, mas não esgota a compreensão do fenômeno jurídico. Para alcançar uma percepção mais profunda, será necessário sair do âmbito técnico jurídico. Em outras palavras, para entender profundamente o Direito, é necessário compreender temas não jurídicos.

Para ilustrar o que disse, vamos imaginar que o leitor, advogado, receba em seu escritório um cliente que peça uma consulta jurídica para saber se determinada conduta é ou não admitida pelo Direito. Ou que o leitor, juiz, tenha que julgar um processo a respeito de tal conduta. A análise da permissão ou proibição da conduta pode ser feita em níveis diferentes de profundidade. Vamos exemplificar com um diálogo imaginário.

Primeiro nível:
- Tal conduta é válida?
- Não.
- Por quê?
- Porque há uma lei proibindo.

Segundo nível:
- Mas essa lei proibitiva é válida?
- Sim.
- Por quê?
- Porque a constituição a respalda.

(Poderíamos, por outro lado, derivar o exemplo. Poderíamos imaginar a alternativa igualmente interessante: - Mas por que foi feita uma lei para proibir essa conduta? Qual o bem que se quer alcançar com essa proibição? A lei proibitiva é um meio apto a alcançar essa finalidade proposta?)

Terceiro nível:
- Mas a sua interpretação da constituição é válida?
- Sim.
- Por quê?
- Porque o Supremo Tribunal Federal entende desse modo.

Quarto nível:
- Mas por que exatamente essa interpretação, desses ministros, é válida? E se esses mesmos ministros mudassem de opinião, proferindo entendimento diverso para o mesmo problema? E ainda pior!!! Se esses mesmos ministros proferissem entendimento contrário a determinado dispositivo literal da constituição? Por que essa interpretação seria válida?
- Porque... Porque... Porque...

(Aqui poderíamos ir até mais longe, chegando aos indivíduos que funcionaram como Poder Constituinte no passado... Mas fiquemos no simples.)

Esse diálogo imaginário representa de modo resumido os níveis de análise a que podemos descer ao estudarmos um determinado problema jurídico. Numa situação real, com detalhes de um caso concreto, poderiam ser ditas milhares de coisas a mais. Um dos níveis poderia, a depender dos detalhes do caso concreto, ser mais detalhado e debatido que outro. Entretanto, quisemos apenas apresentar uma estrutura geral que será aproximadamente a mesma nos debates jurídicos em geral. Essa visão sintética nos permite fazer as observações que desejamos apontar neste texto.

A primeira observação é que, até o terceiro nível, embora estejamos aprofundando a análise, continuamos no âmbito do sistema normativo. De modo simples, justificamos a conduta com base na lei (norma), justificamos a lei com base na constituição (norma de maior hierarquia) e justificamos a interpretação com base no órgão que a profere, com base na definição constitucional. Porém, no quarto nível, não importa qual a resposta que se dê, estaremos saindo do âmbito normativo e ingressando numa investigação político-sociológica. Saímos da norma e ingressamos na análise das relações de poder de uma sociedade.

A segunda observação é que a passagem de um nível a outro nem sempre é feita no dia a dia dos fóruns. Só se faz esse aprofundamento quando há uma excepcional motivação sócio-política para tanto. No mais das vezes, o primeiro nível é o que basta à resolução de problemas jurídicos levados a tribunais. Por incrível ou estranho que pareça, é assim que funciona. Você não verá um juiz de primeira instância fazendo a mínima reflexão sobre constitucionalidade para decidir sobre um despejo comum. Não que seja impossível perceber questões constitucionais nessa situação. Simplesmente não haverá, modo geral, motivação ou interesse em aprofundar uma discussão que parte de um problema de menor impacto social.

A terceira observação é que somente entenderemos verdadeiramente o Direito quando chegarmos ao quarto nível, onde percebemos que o Direito é um fenômeno respaldado/sustentado socialmente por elementos não normativos, exteriores ao estudo técnico-jurídico. O Direito não se sustenta por si, ele depende, para viger, de fatores estranhos às normas e conceitos que o compõem. Eis, portanto, o meu ponto: você pode tentar justificar o Direito com base nele mesmo, ou seja, analisar se determinada conduta é permitida ou proibida com base na lei. Porém, ao descer a níveis mais profundos de análise/justificação, você precisará chegar às relações de poder político-social que permitem fazer o comando normativo teórico ser implementado no mundo concreto das pessoas de carne e osso.

Então, aí veremos com clareza que Direito e Poder andam de mãos dadas desde que o mundo é mundo e, embora tenhamos, ao longo da história, criado sistemas mais complexos e intrincados, a verdade última das relações sociais continua sendo determinada pela força. Talvez não mais a força dos músculos, pois hoje temos armas. Talvez não mais pela força de um só, pois hoje temos setores sociais que se interinfluenciam e se combatem ou se apoiam. Talvez não mais a força física/bélica apenas, pois temos hoje mecanismos de pressão econômica, opinião pública etc. Porém, ainda assim, o Direito não se encerra num sistema teórico puramente normativo. O Direito é o fruto resultante do turbilhão de forças político-sociais em incessante interação numa dada sociedade.

Por isso, então, que o estudo do Direito depende, para seu aprofundamento e completude, que se avance sobre elementos extra jurídicos. Claro que é possível viver do Direito (profissionalmente falando) sem pretensões tão ambiciosas. Nem todos desejam ou precisam se preocupar com essas questões oceânicas. Porém, se se desejar atingir um entendimento profundo, será necessário forjar seu espírito com muito mais do que o mero estudo normativo. Filosofia, sociologia, antropologia, história, economia e psicologia são ciências obviamente necessárias. Contudo, ainda mais do que isso, uma formação humanística ampla, envolvendo as artes em geral, sobretudo a literatura em suas várias formas, por exemplo, também são essenciais. Entender o Direito é entender a sociedade na qual ele se insere; entender a sociedade é entender o ser humano que a compõe. O desafio é gigantesco. O trabalho é infindável. Porém, me parece ser esse o caminho. Eu não recomendaria nenhuma outra estrada.

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