Sim, é um engodo. No Brasil, a
Constituição e o constitucionalismo são engodos ideológicos. Suas teorias são
mantras ritualísticos usados como discurso justificativo/legitimador do
exercício do poder, o qual, por sua vez, é exercido, aqui em terra brasilis, como sempre foi, desde
que Cabral desembarcou, há meio século – ou seja, de forma que costumamos
chamar de coronelismo e patrimonialismo (palavras que dão vieses diversos para
uma mesma idéia em essência).
Precisamos falar de Marx. Sim,
Karl Marx. Esse teórico, por conta dos movimentos político-econômicos, é muitas
vezes mal apreciado. Associa-se de imediato seu nome aos países e partidos
comunistas, gerando um antagonismo nem sempre justificado por suas idéias propriamente
ditas, mas por aquilo que a elas foi associado nos acontecimentos históricos
(i.e., regimes ditatoriais que se valeram de Marx como propaganda). Por isso,
sua obra é mal estudada, embora muito comentada – quem se alinha com as
ditaduras comunistas, usa o materialismo histórico como propaganda de suas volições;
quem se opõe, ao rejeitar a ditadura, descarta todo o “pacote completo” da
propaganda ditatorial e despreza o que a teoria tem de correto.
E o que Marx tem de correto?
Mesmo sem ser especialista no assunto, me permito afirmar que a teoria do
materialismo histórico, como ferramenta de compreensão/análise da sociedade, é
uma teoria, se não “correta”, mas sem dúvida de muita importância. Ainda que se
possa criticá-la – e deixemos isso aos especialistas – ela é dotada de grande
força explicativa.
Então, qual a proposta do
materialismo histórico? Essa teoria propõe que os elementos culturais de uma
sociedade estão determinados (sim, determinados!) pelo seu modo de produção.
Marx usou a metáfora da construção civil e trabalhou com as idéias de
superestrutura (o que se vê, o que está “por cima”, do lado de “fora”) e
infraestrutura (o material subjacente que sustenta e condiciona o que está “por
cima”). A superestrutura pode, de modo simplificado, ser entendida como os fenômenos
“visíveis” de uma sociedade, desde o mais simples até o mais complexo: o
sucesso de um determinado estilo musical, a vitória de um determinado partido
político nas eleições, o sistema jurídico (direito costumeiro ou positivado), a
preferência por dada religião etc. A infraestrutura, por sua vez, são os
fatores materiais de produção econômica: como se produz riqueza em dada
sociedade.
O enredo, aqui, é amplo e a
conversa poderia ir longe, mas façamos um corte. O que precisamos retirar do
materialismo histórico é que o Direito não é aquele conjuntinho de artiguinhos
que carregamos no vade mecum jurídico.
O Direito é, antes e mais, o conjunto de fatores que gera, cria, embasa a
redação desses tais artiguinhos. Em outras palavras, a verdadeira compreensão
do Direito demanda perceber e entender o conjunto de motivos profundos pelos
quais se escreve um artigo de lei de um jeito, e não de outro. Por que
determinada conduta é proibida? (“Porque está na lei”, diriam os novatos; ok, mas
por que está na lei e não fora dela?) Por que a maioridade se dá, atualmente, com
18 anos? Por que não aos 21, ou aos 16? Quando perguntamos por que a lei é de
um jeito, não de outro, não encontramos respostas na própria lei, compreendem? As
respostas a essas perguntas estão no modo de pensar o mundo da sociedade em que
as regras se inserem. (Por isso se estuda, ainda que mal, filosofia, sociologia
e economia na faculdade de direito.) Por outro lado, o modo de pensar o mundo é,
segundo o materialismo histórico de Marx, determinado pelos fatores de produção
vigentes. Nisso, me parece, Marx estava muito certo.
Nada mais errado do que falar de
constituição como algo metafísico que viesse de uma dimensão paralela para nos trazer
idéias sobrenaturais que deveríamos respeitar e obedecer. Assim, não adianta
falar de constitucionalismo, nem de constituição, como se fosse um documento
normativo – e sua respectiva teoria – autóctone, desamarrado da cultura social
que a produz e que a aplica. A constituição é algo que só existe na praxis social, nunca fora dela. A constituição
é humana, demasiado humana. Assim como todo ser humano, ela tem meia dúzia de
virtudes (às quais tendemos a nos ater), acompanhadas de trezentos vícios (que
tentamos corrigir, ou fingimos que não existem). Humano, muito humano.
Nós, em livros e salas de aula,
falamos de constituição como se fosse um ente abstrato, criado por geração
espontânea, algo enviado por um ente supra-humano, extraterrestre, sendo esse
documento supostamente dotado de um significado exterior e sobreposto ao
povo/sociedade em que se insere, como se fosse proveniente de uma entidade que
nos teria trazido “verdades” da “dignidade da pessoa humana” e outras coisas
bonitas de se dizer como essas, mas que, na verdade, são meras palavras vazias,
sem conteúdo efetivo. Esquecemos que o “documento constituição” é criado por pessoas,
com seus interesses, opiniões, preferências, aspirações, frustrações etc. etc.
etc.
Aquela tal “dignidade da pessoa
humana”, por exemplo, pode ter certeza, prezado leitor, não foi fruto de
entidades espirituais, preocupadas com o Bem Comum, a quem chamamos
pomposamente de Poder Constituinte Originário, que teriam debatido por eras
sobre o significado e importância da pessoa humana em sua essência etc. etc.
etc. Isso é apenas uma explicação romantizada que professores/autores fazem após
o texto pronto. É o jeito que temos de explicar o que “está-aí”, assim como um
índio no meio do mato vê o raio e o “explica”, dizendo que Tupã está bravo. Porém,
meus amigos, em verdade vos digo: a vida real é bem mais cruenta e bem menos
romântica.
Pra te ajudar a alcançar o que é
esse tal Poder Constituinte Originário, imagine um trabalho em grupo, desses de
faculdade que todos já fizemos. Teoricamente, todos os membros do grupo querem
o melhor trabalho. Porém, na vida real, sabemos que isso não é tudo. São rotinas
diferentes: um quer se reunir no sábado, outro na terça-feira. São visões
acadêmicas diferentes: um prefere abordar o tema pelo viés filosófico, outro
pelo viés legalista. São caráteres diferentes: um vai ser honesto e contribuir,
outro vai (ao menos tentar) se acomodar e deixar o trabalho pesado nas costas
dos outros, mas sem deixar de colocar seu nomezinho na capa, claro. Tentar conciliar
isso tudo é, digamos, impossível. Não se faz o trabalho ideal, claro! Faz-se o
que dá pra fazer, o que é possível. No meio dessa confusão destemperada, surge
um produto final que, às vezes mais, às vezes menos, não tem aquela unidade de
trabalho de grupo pensado coletivamente que se supõe ter. Porém, diante do
texto pronto, nos arranjamos diante do professor – dizemos que um fez isso,
outro aquilo, que os motivos são assim e assado etc. etc. Isso é uma imagem bem
realista do que é nosso Poder Constituinte Originário.
Então, o que importa entender no
fenômeno constitucional não é o textinho normativo da constituição. Nem o
textinho teórico do livro de Direito Constitucional. O que importa, de verdade,
é entender a prática social da constituição, ou seja, como interagem na prática
as instituições, os ocupantes de cargos de decisão (nos três Poderes) e a
comunidade em geral. Esse o sentido profundo da coisa. Esse o único sentido que
verdadeiramente importa. Não adianta nossos professores ensinarem que, por
exemplo, digamos, os direitos fundamentais são centros axiológicos do
ordenamento, e que por isso são chamados de “fundamentais” (metáfora da
construção novamente!), e que foram “escolhidos” pelo (ser metafísico) Poder Constituinte
Originário, e que isso, e que aquilo outro etc. – de nada adiante todo esse
palavreado se nosso Supremo dá uma simples canetada e joga todo esse discurso
no ralo, sem preocupação nenhuma com algo comezinho como fundamentação
consistente (em si mesma), coerente (com
outros julgados) e respaldado (pelo pensamento científico da teoria).
Então, com a ajuda do
materialismo histórico, precisamos colocar as coisas nos seus lugares: parece
inútil e despropositado falar de uma “constituição”, conceito que só tem
funcionalidade útil quando pensado em termos de “prática constitucional” na
vida social. Daí, então, podemos repetir o título: no Brasil, o constitucionalismo
é um engodo, uma mentira. Por quê? Porque a teoria traz a constituição como
elemento limitador do poder do Estado, enquanto no Brasil ela funciona como
discurso justificador das arbitrariedades esquizofrênicas praticadas pelos
donos da bola, os que decidem – considerados os três Poderes. Digam-me os
leitores: o que são bibliotecas de teorias diante de uma canetada do Supremo? O
que é a norma constitucional sem que revoluções sejam movidas face ao ato de
vilipêndio ao seu texto? Respondo: nada, nadica de nada.
Então, o resumo da ópera é o
seguinte. O Brasil há muito, quiçá desde sempre, teve sua constituição não como
instrumento de luta da sociedade contra os abusos do poder do Estado, mas,
antes e ao contrário, como ferramenta do discurso dos que ocupam o poder para
continuarem a exercê-lo como sempre o fizeram – o que, no Brasil, quer dizer “por
meio de conchavos, apadrinhamentos, coronelismo e patrimonialismo”. Me perdoem
os que viveram para isso, mas, aqui em solo pátrio, o constitucionalismo é uma
farsa. Essa é a vida real da constituição: precisamos desconstruir essa fábula que
nos faz crer em uma entidade supra-humana que nos agraciou com verdades metafísicas
que o Supremo segue ou deixa de seguir. Precisamos entender que a constituição
somos nós (Supremo incluído no “nós”), o que fazemos ou deixamos de fazer, o
que pensamos, o que gritamos e o que calamos. O constitucionalismo é um engodo.
Post scriptum aos doutos: sim, eu li Ferdinand Lassale na
infância, mas não achei necessário citá-lo, embora veja que muita coisa se
alinha com suas idéias. Eu também li Konrad Hesse, mas acho que ele superestima
essa “força normativa”.