domingo, 16 de abril de 2017

POR QUE O CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO É UM ENGODO?


Sim, é um engodo. No Brasil, a Constituição e o constitucionalismo são engodos ideológicos. Suas teorias são mantras ritualísticos usados como discurso justificativo/legitimador do exercício do poder, o qual, por sua vez, é exercido, aqui em terra brasilis, como sempre foi, desde que Cabral desembarcou, há meio século – ou seja, de forma que costumamos chamar de coronelismo e patrimonialismo (palavras que dão vieses diversos para uma mesma idéia em essência).

Precisamos falar de Marx. Sim, Karl Marx. Esse teórico, por conta dos movimentos político-econômicos, é muitas vezes mal apreciado. Associa-se de imediato seu nome aos países e partidos comunistas, gerando um antagonismo nem sempre justificado por suas idéias propriamente ditas, mas por aquilo que a elas foi associado nos acontecimentos históricos (i.e., regimes ditatoriais que se valeram de Marx como propaganda). Por isso, sua obra é mal estudada, embora muito comentada – quem se alinha com as ditaduras comunistas, usa o materialismo histórico como propaganda de suas volições; quem se opõe, ao rejeitar a ditadura, descarta todo o “pacote completo” da propaganda ditatorial e despreza o que a teoria tem de correto.

E o que Marx tem de correto? Mesmo sem ser especialista no assunto, me permito afirmar que a teoria do materialismo histórico, como ferramenta de compreensão/análise da sociedade, é uma teoria, se não “correta”, mas sem dúvida de muita importância. Ainda que se possa criticá-la – e deixemos isso aos especialistas – ela é dotada de grande força explicativa.

Então, qual a proposta do materialismo histórico? Essa teoria propõe que os elementos culturais de uma sociedade estão determinados (sim, determinados!) pelo seu modo de produção. Marx usou a metáfora da construção civil e trabalhou com as idéias de superestrutura (o que se vê, o que está “por cima”, do lado de “fora”) e infraestrutura (o material subjacente que sustenta e condiciona o que está “por cima”). A superestrutura pode, de modo simplificado, ser entendida como os fenômenos “visíveis” de uma sociedade, desde o mais simples até o mais complexo: o sucesso de um determinado estilo musical, a vitória de um determinado partido político nas eleições, o sistema jurídico (direito costumeiro ou positivado), a preferência por dada religião etc. A infraestrutura, por sua vez, são os fatores materiais de produção econômica: como se produz riqueza em dada sociedade.

O enredo, aqui, é amplo e a conversa poderia ir longe, mas façamos um corte. O que precisamos retirar do materialismo histórico é que o Direito não é aquele conjuntinho de artiguinhos que carregamos no vade mecum jurídico. O Direito é, antes e mais, o conjunto de fatores que gera, cria, embasa a redação desses tais artiguinhos. Em outras palavras, a verdadeira compreensão do Direito demanda perceber e entender o conjunto de motivos profundos pelos quais se escreve um artigo de lei de um jeito, e não de outro. Por que determinada conduta é proibida? (“Porque está na lei”, diriam os novatos; ok, mas por que está na lei e não fora dela?) Por que a maioridade se dá, atualmente, com 18 anos? Por que não aos 21, ou aos 16? Quando perguntamos por que a lei é de um jeito, não de outro, não encontramos respostas na própria lei, compreendem? As respostas a essas perguntas estão no modo de pensar o mundo da sociedade em que as regras se inserem. (Por isso se estuda, ainda que mal, filosofia, sociologia e economia na faculdade de direito.) Por outro lado, o modo de pensar o mundo é, segundo o materialismo histórico de Marx, determinado pelos fatores de produção vigentes. Nisso, me parece, Marx estava muito certo.

Nada mais errado do que falar de constituição como algo metafísico que viesse de uma dimensão paralela para nos trazer idéias sobrenaturais que deveríamos respeitar e obedecer. Assim, não adianta falar de constitucionalismo, nem de constituição, como se fosse um documento normativo – e sua respectiva teoria – autóctone, desamarrado da cultura social que a produz e que a aplica. A constituição é algo que só existe na praxis social, nunca fora dela. A constituição é humana, demasiado humana. Assim como todo ser humano, ela tem meia dúzia de virtudes (às quais tendemos a nos ater), acompanhadas de trezentos vícios (que tentamos corrigir, ou fingimos que não existem). Humano, muito humano.

Nós, em livros e salas de aula, falamos de constituição como se fosse um ente abstrato, criado por geração espontânea, algo enviado por um ente supra-humano, extraterrestre, sendo esse documento supostamente dotado de um significado exterior e sobreposto ao povo/sociedade em que se insere, como se fosse proveniente de uma entidade que nos teria trazido “verdades” da “dignidade da pessoa humana” e outras coisas bonitas de se dizer como essas, mas que, na verdade, são meras palavras vazias, sem conteúdo efetivo. Esquecemos que o “documento constituição” é criado por pessoas, com seus interesses, opiniões, preferências, aspirações, frustrações etc. etc. etc.

Aquela tal “dignidade da pessoa humana”, por exemplo, pode ter certeza, prezado leitor, não foi fruto de entidades espirituais, preocupadas com o Bem Comum, a quem chamamos pomposamente de Poder Constituinte Originário, que teriam debatido por eras sobre o significado e importância da pessoa humana em sua essência etc. etc. etc. Isso é apenas uma explicação romantizada que professores/autores fazem após o texto pronto. É o jeito que temos de explicar o que “está-aí”, assim como um índio no meio do mato vê o raio e o “explica”, dizendo que Tupã está bravo. Porém, meus amigos, em verdade vos digo: a vida real é bem mais cruenta e bem menos romântica.

Pra te ajudar a alcançar o que é esse tal Poder Constituinte Originário, imagine um trabalho em grupo, desses de faculdade que todos já fizemos. Teoricamente, todos os membros do grupo querem o melhor trabalho. Porém, na vida real, sabemos que isso não é tudo. São rotinas diferentes: um quer se reunir no sábado, outro na terça-feira. São visões acadêmicas diferentes: um prefere abordar o tema pelo viés filosófico, outro pelo viés legalista. São caráteres diferentes: um vai ser honesto e contribuir, outro vai (ao menos tentar) se acomodar e deixar o trabalho pesado nas costas dos outros, mas sem deixar de colocar seu nomezinho na capa, claro. Tentar conciliar isso tudo é, digamos, impossível. Não se faz o trabalho ideal, claro! Faz-se o que dá pra fazer, o que é possível. No meio dessa confusão destemperada, surge um produto final que, às vezes mais, às vezes menos, não tem aquela unidade de trabalho de grupo pensado coletivamente que se supõe ter. Porém, diante do texto pronto, nos arranjamos diante do professor – dizemos que um fez isso, outro aquilo, que os motivos são assim e assado etc. etc. Isso é uma imagem bem realista do que é nosso Poder Constituinte Originário.

Então, o que importa entender no fenômeno constitucional não é o textinho normativo da constituição. Nem o textinho teórico do livro de Direito Constitucional. O que importa, de verdade, é entender a prática social da constituição, ou seja, como interagem na prática as instituições, os ocupantes de cargos de decisão (nos três Poderes) e a comunidade em geral. Esse o sentido profundo da coisa. Esse o único sentido que verdadeiramente importa. Não adianta nossos professores ensinarem que, por exemplo, digamos, os direitos fundamentais são centros axiológicos do ordenamento, e que por isso são chamados de “fundamentais” (metáfora da construção novamente!), e que foram “escolhidos” pelo (ser metafísico) Poder Constituinte Originário, e que isso, e que aquilo outro etc. – de nada adiante todo esse palavreado se nosso Supremo dá uma simples canetada e joga todo esse discurso no ralo, sem preocupação nenhuma com algo comezinho como fundamentação consistente (em  si mesma), coerente (com outros julgados) e respaldado (pelo pensamento científico da teoria).

Então, com a ajuda do materialismo histórico, precisamos colocar as coisas nos seus lugares: parece inútil e despropositado falar de uma “constituição”, conceito que só tem funcionalidade útil quando pensado em termos de “prática constitucional” na vida social. Daí, então, podemos repetir o título: no Brasil, o constitucionalismo é um engodo, uma mentira. Por quê? Porque a teoria traz a constituição como elemento limitador do poder do Estado, enquanto no Brasil ela funciona como discurso justificador das arbitrariedades esquizofrênicas praticadas pelos donos da bola, os que decidem – considerados os três Poderes. Digam-me os leitores: o que são bibliotecas de teorias diante de uma canetada do Supremo? O que é a norma constitucional sem que revoluções sejam movidas face ao ato de vilipêndio ao seu texto? Respondo: nada, nadica de nada.

Então, o resumo da ópera é o seguinte. O Brasil há muito, quiçá desde sempre, teve sua constituição não como instrumento de luta da sociedade contra os abusos do poder do Estado, mas, antes e ao contrário, como ferramenta do discurso dos que ocupam o poder para continuarem a exercê-lo como sempre o fizeram – o que, no Brasil, quer dizer “por meio de conchavos, apadrinhamentos, coronelismo e patrimonialismo”. Me perdoem os que viveram para isso, mas, aqui em solo pátrio, o constitucionalismo é uma farsa. Essa é a vida real da constituição: precisamos desconstruir essa fábula que nos faz crer em uma entidade supra-humana que nos agraciou com verdades metafísicas que o Supremo segue ou deixa de seguir. Precisamos entender que a constituição somos nós (Supremo incluído no “nós”), o que fazemos ou deixamos de fazer, o que pensamos, o que gritamos e o que calamos. O constitucionalismo é um engodo.

Post scriptum aos doutos: sim, eu li Ferdinand Lassale na infância, mas não achei necessário citá-lo, embora veja que muita coisa se alinha com suas idéias. Eu também li Konrad Hesse, mas acho que ele superestima essa “força normativa”.